Descera do carro gélido. Seus olhos acinzentavam-se por entre os rostos juvenis e
indecentes. Sua postura carrancuda parecia-lhe arrancar os ânimos e os sorrisos
adolescentes o aborreciam. A porta abrira-se e adentrou a enorme construção requintada e tão pobre. Seus passos eram seguidos por outros passos, não tão distantes. Aquele olhar, porém, relembrava-lhe de quando os animais imploram por comida ou carinho, olhos grandes e chorosos, cujas lágrimas jamais cairiam. Não naquela noite.
– Um sorvete. – pediu enquanto absorvia aquela sombra que lhe cercava contida
entre braços que se seguravam, uma bolsa pendente e os tênis fantasmagoricamente
brancos.
Havia naquele movimento involuntário uma tristeza infantil. Ele via-a recolher-se
em si mesma, como se buscasse um abraço solitário, um toque quente naquele ar tão
fúnebre. Havia morte em seu olhar. Ele aguardava a máquina, barulhenta, produzir aquela gordura fria, doce, enjoativa. Ele sentia-a suspirar nos próprios pensamentos.
Subiram lentamente as escadas motorizadas, pararam de súbito em frente a
bancos de madeira estofados, confortáveis e velhos, tão velhos quanto a postura
carrancuda que ele, agora, parecia ter acentuado. Sentou-se e reclinou-se no encosto
duro de madeira. Ela o olhava clinicamente, tal qual uma criança a ver um brinquedo
quebrado, talvez com a dúbia esperança de reconstruí-lo. Por fim, recostou-se na
banqueta estofada. Nada ali foi dito pelo que pareceram horas. Apenas o trânsito das pessoas a passar, cujos risos embriagados eram a única melodia naquele mar tão melancólico. O sabor doce enjoava o paladar, mas, ainda assim, era profundamente mais agradável que o amargo que sentira durante toda a semana.
– Estou tentando… – disse a voz baixinha, fina – estou tentando e fazendo tudo o
que eu posso… – ela finalmente disse.
O doce descia-lhe as entranhas, gélido, assombroso, tal qual aquela voz tímida que
tentava explicar-se. O sabor do chocolate e das pedras crocantes do doce quebravam-lhe a monotonia dos transeuntes, enquanto mastigava lentamente o grudento produto.
– É só o que tem a dizer? – perguntou-lhe quando finalmente acabou o pote de
gelo adocicado. – Que tem chorado e implorado para alguém cuja resposta já conhece?
A garganta parecia-lhe amortecida, anestesiada pelo frio açucarado com o qual a
tratou segundos antes. Talvez, com a ausência do doce, jamais pudesse ter dito tais
palavras. A pronúncia delas parecia-lhe embotada, como um mofo que, por fim, é expulso das entranhas das paredes. Como uma ranhura a brotar nas vibrações do ar.
– Sim, é só… – respondeu-lhe ela, como se aquelas palavras fossem de fato o fim
do mundo. Sua tristeza parecia desabar sobre seus ombros, e enquanto recolhia-os e se
abraçava disse – Dói… dói demais isso.
Ela parecia abandonar suas últimas chamas no olhar, como se estivesse entregue
a um desespero momentâneo, do qual, sabia ela, não haveria outra chance de
transformar-se. Percebeu em seu movimento a distância de centímetros transmutar-se em milhas, longas milhas. Como se seus braços jamais o alcançassem, mesmo que estivesse a tocá-lo com os joelhos, inconvenientemente.
– O que mais posso eu fazer? – choramingou – Eu não posso fazer nada…
– Talvez, – disse ele – se pensasses mais, talvez se aceitasse que é preciso
atravessar as monstruosidades que a consomem, talvez… você pudesse encontrar-se
fora desta fina e fúlgida agonia, mas parece confortável assim. Parece-me que não há
razão, pois você está confortável aí, na sua dor.
Eis que neste movimento, ele, cujos olhos marejados já tanto suportaram,
encheram-se como se enche um lago numa chuva torrencial, cujas margens chegam a
tocar as portas das casas ao redor, cujas águas aprofundam-se na terra lentamente. E
desaparecem.
– O que quer que eu faça? – disse ela, com sôfrego fôlego – Não tenho o que
fazer!
– Tome mais esta semana… Talvez com ela você encontre algo que me faça olhar
para frente e mudar meu pensamento tão triste e solitário. Use sua inteligência, da qual
nunca duvidei. Pense… – respondeu-lhe – você é capaz de pensar em algo. Algo que
mude meu pensamento.
– Mas eu já tenho feito tanto… – continuou seus choramingos felinos, uma gata a
ronronar pelo desejo de uma caixinha de areia – Você não vê e acha que eu não faço!
– Berre. Tenha raiva de mim – respondeu ele, condescendente – Mas crie alguma
coisa que faça com que eu sinta que você sente algo.
– Jamais duvide do que eu sinto! – gritou – Jamais!
– Se assim for, não posso acreditar, pois duvido de meus próprios sentimentos –
respondeu a ela, calmamente.
Secou os olhos com seu casaco branco. O cabelo atrapalhava-lhe a olhar para ele.
Não poderia chorar. Jamais choraria. Seu orgulho era grande demais para permitir-se
derrubar uma lágrima que fosse, e ele assim percebeu.
– Se nem chorar por isso você é capaz… Não posso amar uma rosa em uma
redoma. A única coisa que eu faria seria vê-la morrer, despetalada.
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