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Infinito

Era uma longa tarde de outono, um frio gélido. Havia um cinza aquebrantado jogado por cima de um pavimento espesso e antigo. Um céu alaranjado que se estendia por milhas e milhas, ainda mais porque o tempo estava estranho hoje. Havia algumas árvores grandes e desanimadas. Porém, os pássaros faziam seu viver diário e imutável. Cantavam longamente, abafados pelo ruido do vento. E ele estava sentado em um banco de pedras azuis. Seus olhos brilhavam docemente e viam a rua se apagar ao longe. Ele havia levantado cedo aquele dia. Estava caminhando desde o início da manhã e não parara nem sequer para beber água. Agora, ao fim da tarde, sentava-se observando o poente por entre os prédios mortos e as árvores tão vívidas. Seu pensamento era tão distante quanto seu olhar, e sua face revelava o traço de uma idade comprida. Muitos anos passados, cujas memórias são inenarráveis, alvuras e lonjuras da tenra idade. Agora, restava-lhe a face enrugada e um sobretudo marrom batido, junto de um par de sapatos bege bastante encardidos da caminhada.

Num sopro súbito da brisa ele sacou o telefone, gasto e antiquado, que já não acompanhava o avanço da tecnologia, assim como seu cansaço já não acompanhava sua caminhada. Olhou a tela, de um brilho falso, cujas letras grandes palpitavam diante de suas íris, e mesmo assim era difícil ler, pois já havia lido tanto e suas vistas eram cansadas. Procurou aquele número antigo, que sabe que jamais fora mudado. Digitou meticulosamente cada caractere. Repousou o aparelho sobre os joelhos e suspirou por uma eternidade delicada.

– Alô?

– É você?

– Quem fala? – perguntou uma doce voz ao longe,que a audição captava apenas pelo desejo de ouvi-la. – É você mesmo?

O velho suspirou por alguns segundos, como se contemplasse algo que lhe fora perdido por muitos anos, buscou ainda o fôlego para dizer tudo aquilo que pensara durante seus passos.

– Sim… – e demorou-se o silêncio – Eu achei que deveria chamá-la…

– O que houve? – retrucou a voz, oscilante e preocupada, como se soubesse da amargura que o mel carrega antes de ser um pedaço delicado com gosto de infância – …

– Eu tive um sonho… – outra vez uma longa pausa, como se cada palavra fosse um grande esforço, uma lembrança distante que demora a voltar – Eu sonhei com tua presença outra vez…

A voz tornou-se muda por alguns momentos, e o velho sentiu seu peito abalar-se novamente, com a sensação de que essa seria a última vez que ouviria aquela voz tão longínqua, mas que ainda era fresca em suas lembranças.

– Já faz tantos anos – respondeu-lhe o chiado do aparelho – não acredito que você

ainda guarde essa sensação… Você está bem?

Ele sabia que não poderia responder a esta pergunta. Ela seria pesada para dizer com todas as letras. Mas seu sonho ainda habitava seu pensamento e por isso ele deveria contá-lo, com detalhes de suas nuances ínfimas, pois cada uma delas era um traço de um castanho que já não via há anos, cujo perfume ainda circula em suas roupas e por isso ele havia caminhado.

– Há algumas horas tive um sonho, como quando eu ainda podia correr. Sonhei como se fosse minha vida inteira, passada num relógio sem marcas. Sonhei como se fosse um brilho eterno em minha mente, tão cansada e falha. Sonhei como se tua voz fosse ainda a mesma, com o velho sabor de falácia juvenil que lhe era tão característico. Sonhei-me com minhas lentes foscas, meus reflexos vazios nestes óculos que há tanto me embaçam a vista. Com o burburinho de um lugar tão cheio de almas jovens, como quando era eu também pequeno. Sonhei com teus cabelos repousando sobre mim. Em teu rosto o olhar delicado de um desejo que não sei se conquistou. Mas eu sonhei e não pude mais dormir. Acordei-me com a lembrança viva e com a saudade daquilo que me cerca há tanto e que não posso tocar. Como se tua sombra fosse a coisa mais próxima de ti a que já pude ver. Meu sonho como estes pássaros que cantam perto de mim, revoando em busca de abrigo para o frio que se aproxima, mas que mesmo assim, não deixam de cantar. Passaram-se as horas e não pude desejar outra coisa se não ouvir tua voz.

– E...eu… – e novamente, como o pesado ar da madrugada o silêncio confortável instalava-se entre as linhas do sinal – …

Ele havia colocado o aparelho novamente sobre a perna, contemplando longamente o cair da tarde, como quando as estrelas querem acordar, e agora a Lua erguia-se como um farol distante numa tempestade em alto-mar. O Sol deitara-se e o que restava era o rosado de sua sombra ainda refletindo o baixo do horizonte, assim como o olhar do velho, que estava gasto e baixo. Viu então as luzes daquela pequena praça acenderem-se e com elas ele voltara o aparelho ao lado do rosto.

– …teceu… – ele não ouviu o que a voz lhe disse – eu… – e seu pensamento estava desligado, e seus olhos cerraram-se – … mo se fosse ontem, e agora está tudo tão diferen… – sua audição não captava todos os detalhes daquela voz – … aí – e então a ligação emudeceu-se definitivamente.

Por fim, junto ao início da noite chegaram aqueles que caminham à luz da Lua, com mãos dadas e sorrisos largos, cujos olhares refletem a existência. Olhares que revelam a razão de ver-se nos olhares alheios, como se alguém pudesse também ver nestes olhos tão velhos uma beleza inacabada, como uma canção que se ouviu apenas uma vez e que agora a memória se recorda de poucos versos. Os olhares estavam fixos uns nos outros, e risos delicados espalhavam-se.

O velho olhou para todos esses que passavam pelas pontes e pelos caminhos, às vezes pulando entre as pedras pela grama. Sorriam alegres e ele também sorria. Havia despido-se de sua saudade e agora tudo o que lhe restava era a contemplação. Via tudo o que havia em seu redor, e as coisas eram coloridas como um brilho de aquarela. Seu olhar cansou-se enfim, e ao virar-se viu um rosto tão familiar, cujas bordas do sorriso eram as mesmas, e os castanhos agora eram alvos como um brilho de marfim.

Os olhos se tocaram e então o velho contemplou o infinito em seu suspiro… E depois o nada…

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