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Foto do escritorEmmanuel Prado

Cinza



Era uma tarde gelada de quinta-feira, um céu cinza aborrecido, como o meu humor, sabe? Estava todo puto da vida porque não queria fazer aquele trabalho de literatura. Ah,aquela porra de literatura. Grande maravilha da existência humana, perdida em um gênio solitário como o meu. Aquela paixão desgarrada por letras em um papel alvo que chegava a arder os olhos.

Quando pus os pés pra fora do Café, enrolando os braços no bolso do casaco tentando encontrar os fones de ouvido, bate aquela brisa afiada nas maçãs do rosto. O que antes me era rosa agora estava quase azul. Os dedos tremiam enquanto eu colocava o fone nas orelhas e ouvia aquela música delicada, “The one that I want...”. Aquela que eu queria ouvir. O tênis desamarra e eu tenho que mexer no cadarço que mais parecia uma barra de aço molhada. O frio era cada vez mais intenso e o vapor dos meus lábios

esfumaçava a lente dos meus olhos.

A calçada fosca tão vazia de calor, só aquele barulho de carros e a fumaça quente dos motores. O interessante foi olhar pra cima da mesa onde deixei meia xícara de café preto, sem açúcar, e ver que não tinha esquecido nada, mas pareceu que um pedaço estava faltando. Voltei pra ver e realmente, nem naquele banco almofadado colado no vitral tinha algo escondido pra mim. Voltei a revirar os bolsos e encontrei uma nota de 5 amassada. Estava caro demais. Teria que ir caminhando naquele frio. Merda.

Agora sim acho que posso sair caminhando. Antes, vou beber a última linha de café, que a essa altura já estava meio gelado. Desceu torto na garganta, como quase todo café que tinha bebido nessa semana. Pus os pés pra fora. Senti a brisa gelada. Agora sim, vamos caminhar. O celular com a tela toda embaçada começou a apitar, quase sem bateria. Tem que aguentar os 20 minutos até a minha casa. Sério, o silêncio estava fúnebre na rua, ia ser tenso caminhar na mudez de um cemitério glacial. Glacial mesmo estava meu humor. Um saco.

Espero o semáforo abrir pra eu poder atravessar a faixa. Tem um casal do meu lado, ela com olhar de tonta pra ele e ele com cara de babaca pra moça do outro lado da rua, a qual nem me dei ao trabalho de olhar. Mais atrás percebo aquele perfume maravilhoso de fast-food com um gordinho com uma pasta de couro marrom brilhante, enquanto ele devorava a mais nova edição do big alguma coisa. Eu com as mãos tremendo nos bolsos. O semáforo, impassível, reluzia de um vermelho sangue quase  macabro. O prédio a minha direita estava cheio de luzes. Do outro lado da rua tinha uma senhora idosa com um guarda-chuva, olhava pro céu a cada dois segundos. Parece que a velha rogou praga. Foi eu olhar pra cima que caiu aquela gota límpida, cristalina, azul, gelada como a morte, no meio da lente do lado direito do óculos. Foi o creck de vidro mais triste da semana, gelou toda minha testa. Vai chover agora, porra.

Olho novamente pro outro lado da rua. Ao lado da velha tem uma moça, provavelmente a que o rapaz estava secando. Toda estranha, com um casaco preto, daqueles sobretudos, um daqueles all stars sujos e mais pretos que o meu humor. A bolsa era cinza-caramelo. Cara, nem sei se essa cor existe, mas foi o que vi na hora. Ela tinha umas luvas felpudas, com umas listras brancas, daquelas que se eu colocar perto do rosto me dá crise de espirro por um mês. Mas mesmo assim não consegui ver o rosto dela. O vapor da minha respiração já tinha fechado todo o meu campo de visão, tanto que não percebi quando o verde reluziu e as pessoas começaram a caminhar. Dei o primeiro passo e tirei os óculos para limpá-los. Cruzo meu caminho com o da velha rogadora de pragas, o gordo passa na minha frente e o rapaz me cutuca e aponta pra moça. Olho pra ela e só vejo borrões e o que parece um esboço de sorriso. O tempo congela, como o clima. Meus olhos se esvanecem sob o peso de um sonho. Vejo-a atravessar a rua. Um pulo delicado para a calçada. Eu, como o grande asno que sou, tropeço feito um retardado ao chegar na outra beirada. O zoom da visão da calçada e da tampa de bueiro parecem instantâneos. Uma risada sonora. Um tapa. Um bipe eletrônico. Gosto quente. Sangue.

Estico as mãos e me levanto. Limpo o nariz e sigo para casa. Vinte minutos daquela cena se repetindo. Quem é ela? Como pude ver tantos detalhes e não saber o desenho de seu rosto? O celular havia morrido durante a queda, chego em casa e coloco-o para carregar sobre o banquinho de metal enferrujado do lado da cama. Sento-me na beira da janela do prédio. A vista do quinto andar é tão singular, tão fria. Meu humor já não está mais tão gélido. Acho que o gosto de sangue aqueceu o ser.

Coloquei o casaco naquela cadeira velha na beira da mesa. Fui avaliar os danos à face. Nada além de um pequeno sangramento. Nada quebrado. Nenhum dente a menos. Só a dignidade que saiu fodida de lá. Menos mal, penso eu. Estico o peso do corpo sobre a pia, cuspo mais aquele vermelho quente. Jogo as roupas no tanque do lado daquela cozinha minúscula. Entro naquele vapor do banho. Fecho os olhos pelo que parecem horas, horas e mais horas, com aquela mágica água quente. Porra, eu amo a tecnologia e a água encanada.

Peço aquela pizza gigante porque não tem nada na geladeira e estou sem saco para sair de casa e comprar alguma coisa. A atendente com voz de morta viva diz que demorará cerca de 1 h e meia. Tudo isso porque o frio tá sacaneando os entregadores. Deve ser. Sento-me em frente a sacada e fico olhando o céu soturno, a lua pálida. A noite é dos poetas, vivem dizendo.

Ouço um barulho estridente vindo do corredor, daqueles que lembram alguém escorregando na porta. Um palavrão daqueles sinistros e uma voz de mulher xingando até a vigésima terceira geração da marca de tapetes do vizinho, que por sinal adora colocar um grande “Bem-vindo” na porra da escada, ao lado do elevador. O babaca quase matou minha tia uma vez, a coitada rolou dois degraus antes de eu segurá-la. Saio pra ver o que tá rolando. Tem uma moça com uma bolsa cinza-caramelo parada na porta do 504. Solto um sonoro “filha da puta”. A sombra de sobretudo vira pra mim e solta uma risada sonora. Lembro do gosto de sangue. Vadia, foi tu que riu de mim. Ela se vira e diz:

– Moço, nem fodendo que você é meu vizinho! Ri na sua cara quando você caiu mas agora fiquei preocupada, você tá bem?

– Tô. – respondi mais seco que o Saara.

– Ééé… Acho que é aquele tal de karma, né? Quase vou pro além por causa daquela merda de tapete.

– Pois é. – retruquei, ainda com gosto de sangue na boca. – Tu precisa de alguma coisa?

– Relaxa. – com aquele sorriso caloroso que derreteu meu humor à la Poe. – Você pode ver se minha sacola caiu em outro andar?

– Beleza.

Que merda. A guria é toda delicada, ao mesmo tempo que consegue olhar com aqueles malditos olhos borrados pra dentro da minha alma. Eu, como bom animal que sou, não prestei atenção no rosto dela. Tava muito ocupado prestando atenção no que tinha rolado algumas horas atrás. Desci dois lances de escada e encontro uma sacola cheia de livros. Blake? Sério? Quem lê William Blake, meu senhor? “The red dragon and the woman clothed with the Sun”, no texto original. Subi folheando as páginas velhas e amareladas. Comprou num sebo esse livro. Tropeço no último degrau. Outra risada sonora.

– Caralho! Hoje não é meu dia.

– Cuidado, rapaz! – a moça riu sonoramente mais uma vez. Foi no fundo do cérebro. – Quem disse que você pode ficar vendo as coisas dos outros? Folgado!

Pegou o livro dos meus dedos mais rápido do que o gatilho do Rambo. Busca implacável pra encontrar o que faltava na minha mão. Senti o raspar das unhas na minha pele de um modo delicado e gentil. Meu humor oscilava entre o preto mais preto que a sombra do Batman e o sol dos Teletubbies.

– Tu curte poesia é? – perguntei tentando recobrar o mínimo de compostura. A brisa de fora bateu gelada nas minhas costas. Me dei conta de estar sem camisa. Que vergonha da porra. Senti o sangue subir ao rosto.

– Aham. Mas me responde uma coisa, você sempre fica assim, vermelho rouge, quando fala em poema?

– …

A garganta travou. Olhei para a porta do meu apartamento. Aquela porta de madeira maciça, com um grande 502 escrito. O corredor pareceu-me esticar cerca de 20 quilômetros. A porta da casa dela, por outro lado, estava a cerca de dois passos. Ouvi o tilintar do metal. O som da trava da porta abrindo-se. Outra risada sonora. Virei-me para o meu apartamento e comecei a caminhar da maneira mais perfeita possível, mas sinto que parecia um pinguim com parkinson. Adoraria ver o Bruce Wayne pra me encher de porrada e fazer com que eu andasse direito. Que merda.

– Moço! Não esquece de pegar o resto da sua dignidade aqui em casa, tá? Beijo!

Aquilo ardeu. Entrei e tentei trancar a porta. Olhei pelo olhinho mágico vagabundo que o prédio colocava nas portas. As travas pareciam feitas de algum material mais denso que a gravidade de mil planetas. As mãos estavam frias e o rosto quente. Respirei fundo

e virei a chave. O som das fechaduras me fez alegre. O alívio. Olho o relógio e se passaram infinitos cinco minutos desde que fui ver o que havia acontecido no corredor.

Eternidade. Santa eternidade.

Acordo de súbito, com o som de uma campainha. Coloco os pés nus no chão gélido. A pizza chegou. Amém. Graças a Deus. Visto a calça da melhor maneira que posso e saio descalço pelo corredor. Chamo o elevador. Uma eternidade pr’aquela velharia subir cinco andares. Colo o rosto no metal ao lado das portas do elevador enquanto espero. A pele parece grudar. O sino dizendo que a grande caixa metálica havia chegado. Entro no cubículo e aperto o grande T defeituoso. Outra eternidade até descer.

Chego no térreo e vejo aquela criatura doce de cabelos pretos mais uma vez. Deve estar

me perseguindo, não é possível. Ela pega uma grande caixa de papelão e solta outra daquelas malditas risadas. Enfio a mão no bolso e tiro aquela cédula de 50 gastada, com a pontinha faltando. Chego na porta.

– Oi, Lucas, tudo bom, cara? – cumprimento o entregador, meu brother de ensino

fundamental, muito bom jogando meus jogos de criança no super nintendo. – Moça…

– Oi moço sem dignidade. – risos. – Tudo bem ou perdeu mais alguma coisa?

– Fala Vitor! Saudades de jogar aquele Mario Kart! Deu 29, 40. – entrego o dinheiro e ele entrega a caixa e procura uma bolsinha na jaqueta. – Acho que tô sem troco, mano. Posso te dar uma garrafa daquela coca? Daí te volto só 15.

– Beleza. – respondi enfiando os 15 no bolso.

Virei pra chegar ao elevador. Vejo uns dedos finos segurando a porta. Vou ter que dividir 1 m² com aquela moça. Caminho mais devagar do que estou acostumado. Hesito

no final do corredor antes de dobrar a esquerda pra entrar naquele cubículo. Uma outra risada. Parece vilã da Disney.

– Olha, moço, eu não mordo, tá? – olhou com seus grandes olhos de amêndoas, parece que atravessam a alma. – Só se você pedir. – e estalou os dentes. – Tá bem?

– C… Certo. – respondi meio torto. Não queria ter de lidar com aquele olhar muito tempo. – Certo.

– Moço, não fica assim, meu nome é um segredo de Estado, mas mais tarde eu te conto, ok, V I T O R? – repetindo cada som do meu nome até o fundo da garganta, com uma voz que pareceu devorar meu ser.

O sino tocou e eu respirei aliviado. Coloquei rapidamente o corpo para fora do elevador e voltei para a segurança de meu apartamento. Comi pouco e guardei o restante. Aqueles encontros haviam perturbado o que me restava de humor e eu estava completamente confuso. Resolvi então que deveria tomar uma atitude, tudo isso enquanto saboreava o gás efervescente do xarope de cola mais gelado que já havia bebido. Rasgou-me o pescoço. Dirigi-me ao quarto e lá recolhi uma de minhas poucas camisas limpas. Vestia-a de modo apressado enquanto abria a porta. O corredor me pareceu gigante. Hesitei. Coloquei os pés lentamente para fora. Saí e dirigi-me para a porta 504.

Cada passo pareceu desenterrar um pedaço da minha alma de mil metros de gelo ácido. Quando finalmente cheguei a um palmo da porta percebi que ela tinha uma cor mais viva do que a do restante do prédio. O som da madeira nos nós de meus dedos ressoou pelo que pareceu todo o quarteirão. Meu peito saltava. A voz estava embargada e as vistas cansadas. Limpei os óculos com os dedos mesmo. Ouvi passos lentos em direção à porta. Depois silêncio. Escorei os braços na parede, de modo a tocar a porta com o topo da cabeça e perguntei o que eu estava fazendo. Que porra era essa? Tarde demais. O metal da fechadura girara e agora o ranger da maçaneta foi como uma viagem por duas galáxias de tão lento e assombrou-me durante seus milésimos de segundo. O ranger da porta se abrindo foi pior do que qualquer conto macabro do Stephen King ou os filmes do Jason. Mas, no final, o que havia na porta era uma moça menor do que eu uns 5 centímetros, com longos cabelos escuros como a noite, olhos amendoados penetrantes, um vestido azul gasto curto e meias cinzas. O sorriso de um anjo. Como a vista do paraíso após passar pelo purgatório. Contemplei sua face por longos segundos antes de dizer palavra:

– Olá.

– Olá, moço. – respondeu debochada, pra variar. – Apostei com meu gato Roger quanto tempo você ia demorar pra bater aqui. Ele quase venceu, mas agora ele me deve vintão.

Eu ri. Autenticamente.

– Não sou o Roger e nem tenho vintão, mas gostaria de saber quem é você e porque você tem sido tão perturbadora. – enfrentei-a, porém senti-me desarmado pelo seu olhar – Você tem me deixado confuso.

– Sério, V I T O R? – disse rindo e falando sonoramente meu nome, mais uma vez – Não sou nenhum fantasma ou monstro, tá? Já falei que só mordo se pedir com carinho.

Estou congelado vendo seus lábios se moverem pronunciando as palavras. Tudo que vejo é o desenho de um queixo delicado, com um formato ligeiramente retangular, com dentes alvos como o papel reluzente, olhos de amêndoa. O liso noturno lhe encobria parte da boca e desenhava linhas tortas no nariz, que era ligeiramente virado para a esquerda. Deveria ter no máximo 25.

– Você me disse que eu saberia seu nome, moça. Posso conhecê-lo?

– Ainda não, V I T O R. Entra, vou lhe contar uma história.

O convite me foi pavoroso. Pisei em sua casa com meus pés nus, um chão quente, liso. Avistei um sofá amarelado e uma estante que cobria duas paredes inteiras, toda ela repleta de livros. Ao me aproximar percebi que eram todos de um mesmo tema. Capas azuis, verdes, amarelas, laranjadas, cinzas, pretas, marrons, douradas, vermelhas. Em todas elas uma voz de amor ecoava. Aquilo estremeceu minhas pernas. Vi-me cercado de livros de amor, daqueles que eu nunca me atrevera a ler. Poemas sobre o beijo e a saudade. Histórias de solidão e desencontro, histórias de amantes e delicadezas. Singelezas profundas. Ao fundo da sala, próximo ao portal da sacada havia um pequeno sonzinho que tocava “all you never say is…” e algo que não pude distinguir. A voz delicada de uma mulher parecia ecoar pela sala e tocar meu peito, agora aquecido.

– Você gosta de café?

– Claro.

O calor e o perfume doce do grão torrado chegou a me rodear, enquanto eu girava os olhos pelo cômodo. Avistei longos olhos azuis de felino na porta ao final do corredor.

Roger. Ouvi passos delicados flutuarem na porta à direita. Coloco-me escorado no portal, enquanto observo aquela criatura singular dançar com o pote de açúcar na mão.

– Gosto amargo. – disse.

– Ah! Mas é o doce que deixa a vida saborosa. Vou colocar só um pouquinho, tá bom?

Respondi um amargo “beleza”. Enquanto escorava no portal, senti os meus olhos vibrarem. Meu cabelo voava delicadamente ao vento cortante da janela aberta. O cheiro

doce da bebida aquecida deu-me calafrios. Fitei a moça. Passei a devorá-la com os olhos, no intuito de tentar decifrá-la. Parecia-me um quebra-cabeça impossível, sua simplicidade mostrava-se de uma complexidade inimaginável.

– Pronto, V I T O R. – sempre num sonoro Vitor – Senta lá no sofá que eu já levo pra você.

Confortei-me no móvel amarelado. Ainda entorpecido pelo ar do cômodo e pelo cheiro doce do café. Ela veio com uma graciosidade impecável. Uma grande caneca azul-claro na mão direita, e uma verde-esmeralda na esquerda. Estendeu-me os braços para que eu escolhesse. Despreocupadamente segurei sua mão direita. O calor de seus dedos foi suficiente para enrubescer-me mais uma vez. Sorvi lentamente o líquido ligeiramente adocicado. Minha boca relaxou e meu peito pareceu acalmar-se. Ela sentou-se ao meu lado, com as pernas encolhidas, quase como um feto, e olhava atentamente a caneca. Parecia ver borboletas dentro dela.

– And you see her as you close your eyes – cantarolou – You only need the sun when it starts to snow… Opa, errei a letra. – riu sonoramente, agora sua voz não me era mais tenebrosa, mais de uma doçura comovente, que outrora me levaria às lágrimas.

– Você é escritora? – indaguei, olhando atentamente para a bancada no canto ao lado da porta do apartamento, com uma pequena máquina de escrever e milhares de folhas de papel. – O que você faz com tantos livros?

– Os livros são meus escritos. Gostaria de ouvir uns versos?

– Cante-os para mim, moça, por favor. – pedi, com a voz embargada pelo doce do

café.

Ela recitou:


Amargo é o teu amor

Amargo é teu amor

Amargo teu amor

Amargo amor

Amaro amor

Amar amor

Mar amor

Amar o teu amor

Amar no teu amor

Há mar no teu amor

E eu sou teu amor


– Explica-me o que são tais versos? – pedi enquanto fitava-a longamente. Seus olhos colavam minha alma como se fossem desenhados para encaixar-se nela. – Prefiro mostrar pra você, V I T O R.

Seu rosto era tão claro sob a luz trêmula do abajur na mesinha de centro. Seus olhos estavam cada vez maiores, sua respiração era como a minha. Seu olhar com o meu era um só. Seus lábios com os meus eram um só. Suas mãos delicadas tocavam os meus cabelos, e seu respirar era gracioso como passos de dança. Fitei-a no infinito. Suas mãos delicadas desenhavam ares de graça por todo meu corpo. A luz da lua iluminava nossos rostos palidamente. Minha razão já havia me deixado e eu era de todo coração. Meus pensamentos eram vazios e tudo que havia era ela.

Colori-a com meus dedos, em toda sua graça. Em toda sua forma, por todos os delicados traços do seu formato. Desenhei de seu doce e límpido rosto até sua firme mão. Ela, por outro lado, desenhava-se intensa e gentil por todo traço de meu ser. De meu rosto à minha cintura. Minhas pernas e meus braços, meu peito e meu pescoço. Inundados de delicadeza. Ela pesava menos do que uma pluma em meus braços. Projetava-se sobre o meu ser e eu, entorpecido, não poderia desenhá-la nem com a arte de mil pintores. Ela desarmava-se sobre mim, demonstrava sua palidez sob a lua trêmula e a lâmpada fosca. As alças de seu azul gasto escorriam-lhe os braços, revelavam a  ligeira forma arredondada do seu íntimo. Tocava-me o topo do rosto com seus doces lábios. Derretia-me a força e os músculos. Restava-me apenas o êxtase e a entrega. Guiava-me com seus finos dedos pelas linhas tortuosas de seu ser, de modo a

demonstrar curvas tão sutis que nem meus olhos haviam percebido. Sob a pele delicada, marcas sensíveis, cores e perfumes. Desarmava-me ao mesmo tempo em que me guiava pela viagem por suas linhas incontáveis, como as formas de estrelas numa noite clara e fria. Seu peso assentava-se delicadamente sobre mim. Uma graça jamais percebida, uma entrega delicada de meu ser para aquela criatura impecavelmente bela e singular. Sua voz dizia:

– Não tenha medo, só mordo se você pedir…

E seu hálito espalhava-se por meu pescoço, arrepiava-me. E eu seguia suas mãos por suas formas desconhecidas. Seu calor agora era um só com o meu, e minha nudez desarmada era agora apenas um reflexo em meio às sombras daquele momento. Seu toque a adentrar-me o peito, por todos os lados. Meu toque a consumi-la lentamente e nossas almas a se tocarem…

Ao final daquela noite fria, cortante, fúnebre, conheci um ser de modo tão profundo que jamais serei capaz de descrever com exatidão. Ela então, com delicadeza lunar encostou seus lábios exaustos ao lado de meu rosto e sussurrou:

– Eu sou teu A M O R.

E eu estremeci pela última vez.

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