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Canteiro



É aquele cheiro doce de noite, sabe? Quando a gente passa por uma calçadinha meio quebrada, aquele burburinho de pessoas num saguão meio baixo, falando qualquer coisa, e aquele canteirinho maltratado e seco perto dos buracos do concreto.

Engraçado isso, cheiro de flor ainda aparece bastante por lá. Esses dias pisei por lá, naquele cheiro de flor. Apesar do canteirinho do prédio estar praticamente morto, algumas florzinhas azuis ainda soltam muito perfume por lá.

Um cheirinho doce e discreto, sabe? Precisa parar por alguns segundos pra perceber que ainda ter flores por lá. Imagina só, eu que passo por lá todos os dias pra entrar e pra sair das minhas aulas, naquele canteirinho de florzinhas azuis. A secura mata as flores, entende? Alguns poucos canarinhos ainda pousam por lá. O canteirinho é mais delicado do que as grandes árvores do lado de fora da calçada, perto da rua. As árvores são frondosas, tem até João-de-Barro nelas. É sério, vi um na semana passada. Ele tinha um raminho de flores azuis no bico. Ficava perto de um daqueles grandes saguões onde uns e outros conversavam bastante sobre aquelas coisas que a gente nunca sabe o que é, porque nunca dá pra ouvir nada do que as pessoas falam.

Passo pelo canteirinho sempre ouvindo músicas, afinal, perfume de flor e música combinam. Tem aquela música fantástica do Vinícius de Moraes "rosa pra sorrir, rosa pra chorar, rosa pra partir, rosa pra ficar..."

Mas não estou falando de rosas agora, estou falando daquele canteirinho quase maltrapilho, seco e meio morto, meio vivo. Perto das sombras das grandes árvores do lado de fora da calçada, o canteirinho se desfaz, ao calor, ao burburinho das vozes juvenis, às bitucas de cigarros, aos papéis de bala, às palavras secas e aos pés  indelicados.

A terra, toda suja, quebrada, do canteirinho, mas as flores azuis ainda perfumam por lá.

Acho que é como quando passo por lá, nos reflexos dos meus olhos, que percebo aquele canteirinho de flores, que apesar de seco, ainda é doce.

A doçura das flores não se apagou com a secura ou a falta de amor. O canteirinho ainda é florido, mas não sei por quanto tempo. Muitas flores dele já secaram. Talvez quando eu passar por lá amanhã nenhuma flor vai perfumar aquela borda de calçada quebrada. Mas as sementes das flores ainda estão lá. As flores são a metáfora mais clara pra beleza, são também a mais usada, mais reusada, entediada e chata de se ver, afinal, todo mundo escreve da beleza das flores. E quem lembrar de mim vai lembrar que eu gosto de flores. Especialmente as do olhar. Acho que é isso que é o propósito da beleza.

Refletir o olhar, fazer perfumar por um lugar qualquer, em que poucos reparam. Reparar a beleza é algo indizível, afinal, como se conserta o que já é tão perfeito em seu jeito único de ser? As flores azuis não estão quebradas. Aliás, elas são tão perfumadas que acabam arrumando a gente por dentro, sabe? O doce das flores faz isso.

Eu, muitas vezes, paro e olho pros botões de flores, redondos e coloridos, parecem procurar um jeito de tragar a alma pra dentro deles e depois cuspi-la renovada. Quem sabe fazer brotar algumas flores azuis dentro da alma também…

Acho que muito disso que é a beleza das flores desse canteirinho, discretamente arrumando o que a gente não entende da gente mesmo. Tão vazio e seco por fora, a gente nem percebe que muitas coisas chovem ao nosso redor. Às vezes é só chegar no canteirinho de flores azuis ao lado da calçada quebrada da alma da gente, fazer regar as

flores e perfumar o que restar de beleza dentro da alma. Essa beleza é a beleza das flores. Discretas, solitárias e ao mesmo tempo inundantes. Transbordam a calçada, o canteiro, o saguão, a cidade. Transbordam o ser.

Beleza de transbordar qualquer concreto seco, qualquer terra maltratada. A beleza é estranha. Ela nasce e aparece em lugares que a gente não repara e às vezes, quando repara, está prestes a sumir. A beleza desse mundo é assim, florida e efêmera.

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