
Estava colecionando aquelas velharias que comprei na loja da esquina do meu trabalho, perto da redação. Quando saí, naquela sexta à noite, quase traumática, sentei-me no banco perto do Café que costumo tomar perto das oito. Ouvi de longe o sonoro traço indistinguível daquela voz. Maldita criatura. Ainda estava parada do outro lado da rua, encarando as pessoas que passavam com uma máquina polaroide pintada, convenientemente, de um verde-esmeralda. Puta merda, viu.
Coloquei a pasta com o notebook nas costas e caminhei em direção ao Café. Entrei e procurei a mesa mais ao canto possível e felizmente era aquela que eu costumava sentar, com vista para a praça e para a parte esquerda do prédio da redação. Não tava afim de olhar pro prédio, então prestei atenção nos pássaros na praça. A moça veio me perguntar o que eu queria.
– O de sempre.
– Preto e sem açúcar, né?
Hesitei por alguns segundos. Lembrei-me do doce. Fitei a moça por um longo milésimo e soltei:
– Põe uma colher de açúcar. – revirei no bolso procurando as moedas. – Brigado.
Saquei o caderno da pasta e comecei a rabiscar alguns traços. Encarei a mesa da frente, com umas moças mexendo numa bolsa grande e no que me parecia um espelho. À esquerda só tinha o meu reflexo no vidro embaçado e os pássaros na praça. Olhei pro balcão e resolvi desenhar a jarra de café gelado. Parece que nunca tiram ela de lá. Quando termino o primeiro esboço chega a caneca, grande e preta, com o líquido semi amargo. Bebo e fico encarando o papel e o lápis. Passo demorados minutos brincando com o lápis e bebendo.
De repente um grande flash de luz. Meus olhos ficam cegos por alguns segundos e eu solto uma das expressões mais libertadoras do nosso idioma. “Filha da puta”. As moças da mesa da frente começam a debochar do meu vocabulário autêntico e sincero. No balcão a atendente revira os olhos. Grande merda. Tiro os óculos e começo a esfregar os olhos. A criatura do 504. Só pode ser ela.
Viro-me para o espelho, embaçado cerca de quatro vezes graças à minha visão em perfeito estado concedida na data de meu nascimento. O sobretudo preto e a bolsa. Não vejo mais nada. Outro flash. Silêncio. Risos. Passos distanciando-se no horizonte. Bebo o que resta do café e levanto-me de salto. Jogo as moedas no balcão e chego próximo à mesa das moças. Escoro o corpo no banco almofadado onde três delas estão sentadas e dou um longo bocejo. Trouxas.
Saio do Café às gargalhadas. Meu humor preto como a noite de Bram Stoker estava de volta. Os vampiros da cidade grande estavam caçando pessoas para as compras do início de fevereiro. Um dos malditos sanguessugas me para quando estou a cinco passos da faixa. O semáforo abre para os carros. O vermelho boneco bizarro reluz poderosamente.
– Compre agora o melhor presente possível! Adquira a nossa caneta esferográfica especial! Ela pode escrever qualquer palavra! Garanto que a sua não faz isso, rapaz!
– E ela pode escrever aquele endereço onde você pode ir buscar o dinheiro pra eu pagá-la?
– Claro, meu jovem, basta me dizer que irei até lá com a encomenda. Onde é?
– Na esquina da casa do Caralho.
Ri sonoramente e saí caminhando em direção ao outro lado da rua. O ar continuava frio e eu não havia trazido os fones sagrados. Estava com as orelhas apostas para o restante do som que saía dos apartamentos próximos ao Café. Vi um gesto de relance que me fez rir mais ainda. O vampiro das canetas parece ter sido vencido por uma boa caralhada de prata. Ri sozinho mais uma vez.
– Obrigado, moça! – um som de porta batendo – Obrigado – abafado.
Viro-me e lá está a criatura soturna. Disfarçada de moça. O que é aquele ser? Pareceu-me uma lembrança desgastada. Recobro a postura e sigo caminhando pelas vinte quadras restantes. Saí mais tarde hoje e tudo já está fechado, exceto pelo velho que grita com o cachorro:
– Volta aqui, lazarento! Volta aqui!
Parece-me que o vira-lata pegou o último pedaço de alguma coisa na mão do velho e ele mais parecia uma sombra correndo atrás do cachorro com o intuito de esfolá-lo vivo.
O animal, entretanto, corria muito mais do que um homem perto de seus 70 anos. Latidos seguidos de um choro. O velho atirou uma pedra com a precisão de um atirador de elite. O cão sai como um velocista por cerca de duzentos metros antes de desaparecer em um terreno baldio a duas quadras dali.
Avisto a fachada daquele edifício ancião. As pedras acinzentadas do lado de fora formam uma pequena barba de concreto ao redor da entrada principal, especialmente por estarem desgastadas pelo tempo e pela pintura especialmente malfeita de cerca de 40 anos atrás. Reviro os bolsos atrás das chaves. Encontro o metal frígido e tiro-o do bolso, no entanto ele sai correndo de meus dedos e rola cerca de 200 metros na calçada, fazendo-me buscar a entrada para minha casa do outro lado do quarteirão. Quando retorno a porta está aberta, convidativa como uma armadilha ao coelho curioso que passa perto de uma árvore. Observo de longe o vitral embaçado e não vejo nada do lado de dentro. Coloco os pés para dentro do prédio e viro os olhos pelo salão da recepção. Mais vazio que o coração de Capitu. Fecho a porta e dirijo-me ao elevador.
Enquanto aguardo a peça de metal descer do vigésimo andar como uma lesma raquítica, procuro o que fazer no saguão. Vou até minha caixa de correio e encontro um
envelope cinza-caramelo. A criatura está jogando tenebrosamente comigo. Passo a mão
pelo papel áspero e procuro uma borda para rasgá-lo. O sino toca e eu vou para o cubículo mais veloz do país. Aperto despreocupadamente o 5 e continuo investigando o envelope marcado. Uma brecha. Observo-a mais de perto e pego a chave para abri-lo. Uma voz vinda de outra dimensão penetra meus ouvidos:
– Como você é sem graça! Já vai abrir? Não vai nem brincar com o mistério primeiro?
– Mas que p… – e vejo aquela doce criatura, cinco centímetros abaixo de mim, fitando minhas mãos com desejo infantil e um sorriso malicioso. – Que p…
– Olha, moço – ela me interrompe – Não sei você, mas acho que esses palavrões já estão sendo pesados. Porra, para com isso.
– Quê? Como? Onde? – estou perplexo procurando, infrutiferamente, entradas
advindas de outra existência para que possam explicar de que maneira aquele ser brotou ao meu lado. Havia apenas a porta de metal travada – Quê?
– Ótimo! – exclamou aliviada – Além de grosso ainda é tapado.
Que merda. Estou com as mãos paradas e os olhos vidrados observando aquele cubículo sem saídas fazer brotar uma criatura tão singular. E esse jeito. Nem parece que
foi naquela prata lunar…
Guardo as chaves no bolso e passo longos segundos examinando o objeto da reclamação daquela moça. Percebi letras escritas por um lápis de um jeito tão frágil que
lembrava um grafite sem tinta. O sino toca e o quinto andar se abre diante de nós como
uma porta mágica para o paraíso. A segurança de meu apartamento.
– Olha, V I T O R, eu vou sair primeiro dessa vez, tá? Ontem você quase me fez derrubar a entrega especial.
– Desculpa… – respondi engasgado, tentando entender o que estava acontecendo.
Quando ela colocou os pés para fora do elevador consegui entender o que estava acontecendo. Projetei-me para fora e caminhei até minha porta. Adentrei a segurança de meu lar, vazio como uma noite poluída, sem estrelas. Acendo a lâmpada da sala e ela
brilha bruxuleante. Jogo a pasta no sofá e coloco o envelope sobre a mesa abaixo da lâmpada. Ligo o chuveiro e espero a água aquecer. O envelope parece me encarar como
os malditos olhos amendoados. Vejo o vapor sair da porta do toalete. Jogo as roupas no
chão e entro no box. O fogo da água queima minhas costas e me desperta. O alívio.
Quando finalmente saio enrolado na toalha dirijo-me para a cozinha e coloco o que sobrara da noite fatídica de quinta-feira no forno elétrico que ganhei da minha tia acidentada. 10 minutos deve ser suficiente. Pego o celular ao lado do móvel de centro. E-mails inúteis. Jogo-o no sofá junto da pasta e vou para o quarto. Na escrivaninha deparo- me com um papel áspero, cinza-caramelo. Não é possível. Viro-me para a porta e saio olhando para a mesa iluminada de amarelo. Vazia. Isso não é natural. Passos. Ela está me sacaneando. Visto um jeans e vou até a porta. Destrancada. “Filha da puta, entrou porque eu deixei a porta aberta”.
Sento em frente à cama e apalpo delicadamente o invólucro, tentando decifrá-lo. Leio as linhas em grafite transparente:
O Roger apostou comigo se você conseguiria adivinhar meu nome sem ter que
abrir essa carta. Espero que ele me deva mais vintão. Boa sorte, Vitor.
Vadia. Está brincando comigo. Reviro o papel áspero em busca de mais pistas. Nada. Olho pela janela e vejo meia-lua, pálida, prateada, e uma dúzia de estrelas meio apagadas. A cidade estava definitivamente mais brilhante hoje. É dia de festas nas esquinas e música nos pubs. “And I told you to be patient… And I told you to be kind…”. A música ecoava pelo apartamento. Atentei-me ao som. Dentro da minha casa. Tá me sacaneando, sério. Saio do quarto. Faltam três cômodos pra investigar. À direita a sala e a cozinha. À esquerda o banheiro. O quarto de banho estava vazio. Restam dois. Pus o rosto dentro da sala e olhei para a porta da sacada. Entreaberta. O sino do forno. Fui imediatamente à cozinha e peguei uma fatia gordurosa de queijo com uma maravilhosa massa e continuei minha caçada no melhor estilo Sherlock Holmes. Faltava só o cachimbo. O sofá estava vazio e nada atrás dele, a não ser pelo sonzinho velho tocando a música. Desliguei-o.
– Boooooo!!!!!
Caio de costas no chão. Bato a cabeça e a pizza voa cerca de 2 metros. Estava tão boa. Merda. Olho pra cima com a cabeça girando e procuro aquela doce criatura. Risada sonora. Inconfundível. Ergo o peito nu e escoro o peso no braço direito. Meus óculos estavam do outro lado da sala. Vi, no entanto, as grandes amêndoas paradas ao lado do
portal da sacada. Um suspiro:
– Diz pra mim que você não machucou! Não queria te deixar ainda mais tapado, mas parece que a pancada agora te deixou mudo. Você sabe língua de sinais?
Fiz o sinal universal para ela. Aquele grande dedo. Outra risada sonora. Passos em minha direção. Um toque delicado nos meus ombros e eu me levanto. Toco a cabeça e nada além de meu cabelo bagunçado. Dedos dançam em minha pele. Estremeço. Sinto a pele dançar com aquela delicadeza jogando com meu corpo. Movo-me em direção aos
meus óculos. Os dedos firmam-se em minha cintura. O beijo doce. Os dedos delicados. Agora não. Não vou sucumbir tão facilmente. Preciso esclarecer coisas.
Pego os óculos e finalmente recebo o dom da visão. O mesmo vestido gasto azul. Uma das alças em suas mãos enquanto a outra escorre pelo braço. Os pés descalços nesse meu chão gelado. Olhei-a com ternura. Dirigi-me ao quarto e busquei o envelope. Sentei-me no sofá com o objeto em mãos enquanto aquela criatura fitava-me com aquelas amêndoas. Tive o desejo de lançá-la pela janela. Tive o desejo de entregar-me
novamente. Baixo os olhos para o papel áspero.
A mão fina desenha em minha frente. O formato de uma letra. Um grande e traçado A. Genérico. Quem ela pensa que eu sou? Mãe Diná? Santo Cristo. Reviro os olhos e ouço outra gargalhada. Uma perna adentra meu campo de visão e tira o envelope de minhas mãos. O vestido azul cai como um manto singelo sobre a lisura daquele rosado. O azul inunda-me os olhos. Sigo o azul e vejo aqueles lábios em meia-lua. O envelope pendurado neles. Pego-o de relance:
– Quem você pensa que é para pegar as coisas dos outros assim? Folgada.
– Ha! Ha! Safado! Devolver a fala é jogo sujo! Já descobriu alguma coisa? – com um tom ironicamente bem construído – Ou vai me fazer dever vintão pro Roger?
– Quem sabe. A única coisa que eu sei é essa merda desse A que você desenhou! Como vou adivinhar alguma coisa? Não tenho bola de cristal e nem baralho de tarot.
O toque daquela perna parece apertar-se em mim. Toco-a, distraído. Passo longos minutos sentindo aquele calor em minhas mãos. Minha mente parece apagar-se por eternidades. Preciso tê-la. Outra vez. Agora. Enxergo o azul desenhando suas formas. Tão perfeitas… Um devaneio. Quando a razão retorna o maldito envelope sumiu outra vez. Puta merda. Ela está me sacaneando. Porra. Derrubo-a no sofá. Posto-me sobre ela e aproximo meu rosto:
– Cadê ele?
– Hum… Mas é folgado e grosso! Tem que aprender a derrubar uma dama com gentileza e no lugar certo, V I T O R.
– Quer me foder me beija, moça. Cadê ele?
Um beijo. Criatura. Está zoando com a minha cara. Reviro seu corpo em busca do papel áspero e a única coisa asperamente redonda que encontro não deve ser revelada antes da lua atingir o ponto mais alto do céu. Continuo procurando e resolvo desistir. Ela deve ter jogado pela sacada. Salto do sofá e corro para a sacada. Coloco o pescoço para fora e vejo longos olhos felinos. Roger. O infeliz está com o envelope. Alcanço o bichano e pego o papel da maneira mais educada que consigo:
– Valeu, Roger.
– Ah! Não é justo!
– Vou é abrir isso agora… – busco a chave sobre a mesa e coloco-a na abertura delicada do cinza-caramelo. – Ah, finalmente a glória.
– É quase isso, V I T O R, mas não vai abrir tão fácil.
Num movimento semelhante ao de uma flor desabrochando seus dedos alcançam o bolso de minha calça e puxam-me. Solto a chave. O envelope ainda está seguro. Resolvo abri-lo com as próprias mãos. O papel rasga delicadamente. O barulho de zíper. O toque. O desconcerto.
– Mas que p…?
– Falei que não ia ser fácil. – disse com um riso sonoro e delicadamente sedutor.
– Tira a mão, criatura. – afasto-me com uma gentileza artificial que não me pertence – Vamos com calma, aí.
Termino de rasgar o envelope. Abro o papel. Na primeira dobra tem escrito:
Tem certeza de que quer saber?
Viro a próxima dobra. Mais uma mensagem:
Acho que não vai ser tão legal ficar devendo pro Roger, né?
A terceira dobra:
Hum…
Outro toque delicado. Fito-a com seriedade. Os olhos de amêndoas atravessam a alma. O vermelho vibra e eu não sei o que fazer. Num momento de descuido sou jogado brutalmente no chão. O peso de uma pluma sobre mim. O papel alvo voa de meus dedos.
A brisa joga os cabelos dela sobre meu rosto. O calor do hálito. Minhas mãos precisam se ocupar. Agarram-na delicadamente, profundamente.
O papel voa pela sacada…
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