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Foto do escritorEmmanuel Prado

Último Olhar



Foi-se muito tempo sem escrever nada. Palavras que sairiam de mim facilmente outrora. Palavras de um movimento tão meticuloso e límpido, frio e vazio. Minhas palavras hoje são estas, tão sós. Meu coração seria um lugar tão sereno sem elas, às vezes. Mas meu sentimento consiste em palavras, muitas das quais não sei escrever. Palavras que não cabem no branco do papel, e que por isso, não podem vir a ser. São como uma criança em gestação, presa para sempre num útero de memórias.

Ah, seria fácil fazê-las nascer. Nascer num sorriso, nos cachos dos cabelos. Ah, que lonjura infinita esta minha, de escrever para alguém. Hoje recordei-me daquela última vez. Meus olhos tão baixos nos solitários caminhos. Vi-a derreter-se sobre os lençóis, aqueles mesmos que não uso mais. Foi como se eu tivesse visto tudo ali morrer, perecer como as árvores. Um olhar singelo entre dois olhos que não mais se verão.

Naquele dia eu soube, sim, eu soube, que seria a última vez. Quem dera me fosse a última vez de escrever. Quereria que minhas palavras fossem assim, também, num último olhar a morrer.

Mas elas são tão infindas, incontáveis lonjuras. Por que é tudo assim, tão longe de mim? Canso-me na solidão tão persistente dos meus dias. Como se elas fossem as únicas companhias. Ah, quem me dera fosse tão bom como o calor de um sopro nos meus lábios. Mas a solidão são soluços no coração, taquicardia de meu peito arrítmico, que não pode ser assim…

Como uma última vez, meus olhos num corpo delicado, parado e cansado. Como uma última vez, numa pele tão doce, ah, mas que pouco tão simplório, um corpo… Quem dera fosse este corpo a razão desta lonjura tão clara e fria. Mas não é esta pele que me arrasta as memórias. São as poucas coisas que sobram depois do suor, do estremecer da pele. É este momento, singelo, para sempre preso em minha memória. Meu olhar melancólico sabendo que é a última vez. É esta longa impermanência da minha saudade. Saber que não há outra vez para ouvir a voz. Não há outra vez para sentir a companhia tão doce, de contar os meus dias, por mais toscos que fossem. Não há mais quem me ouça e me preencha os dias tão sós, e é esta a verdade.

A saudade está ali, naquele meu olhar. O olhar tão claro de certeza e o desejo de que não fosse. Mas sabia em meu coração. E estava satisfeito naquele meu olhar. “Poderia morrer feliz, agora”. Me ouvi dizer, no meu pensamento onde minha voz é outra, quase como se não fosse minha. Não é uma voz de mulher, de homem, de Deus ou monstro. É minha voz de mim mesmo, no mais profundo de mim, por saber que aquela era a última vez.

Às vezes me sonho com outros olhares, profundos, doces. Sonho com carícias, sangue, monstros, beleza e ausência de qualquer pudor. Mas acordo nas mesmas memórias, tão frágeis. Ah, nem o seu rosto me é claro mais. Tudo se reduz a uma silhueta de adeus, nua em sua perfeição final. Despedida. Não gosto do que sinto. Não gosto de dizer adeus. Mas eu soube desde aquele momento, que seria assim.

E não tardam as minhas lonjuras e me conjurar num espaço místico de memórias. Todas elas presas naquele olhar. Um olhar solitário, tão sábio do futuro que vinha a me esperar. Longos foram os dias para me esquecer daquele olhar. E hoje, anos depois, o olhar ainda me penetra o coração. Lembro-me dele com uma terna melancolia. Talvez devesse ter feito mais do que olhar. Mas minhas palavras nunca foram ouvidas.

Seria mais fácil que minhas palavras somente fossem assim, como pássaros no ar. Palavras tão sós, tão sós. Minha vida tão só, como um mundo que antes vivia em mim. Via nas ruas a solidão de um Sol a brilhar. A luz de sua insípida lágrima. Aquela que nunca derramou. Me sinto como um Sol, às vezes. Sozinho no espaço, cercado de planetas que não veem. Ah, meu sistema a chorar. Quem dera eu fosse um astro celeste, brilhante na imensidão.

Agora, não quero mais poetizar. Tudo que meus poemas derramam são tristeza, saudade inútil. Como aquele meu olhar. Estava ali, ao alcance dos dedos, e ainda assim, tudo o que tenho é a memória daquele olhar. Mas não o de alguém para mim. Mas o meu próprio olhar. Como se eu pudesse me ver naquele quarto escuro, sentado à beira da cama. A penumbra a me revelar uma beleza tão perfeita. Mas agora, é ela um vulto. Uma sombra delicada. A cada dia uma coisa que vejo menos. Estou cansado da saudade daquele meu olhar.


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